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Quando deixámos de pensar nos outros?

Hoje fui ao centro de saúde atualizar os dados da minha filha mais nova. O tipo de burocracia que ninguém gosta, mas que se aceita como parte do pacote de ser mãe. O que não se aceita com a mesma naturalidade é a resposta que recebi: tempo de espera de 12 meses para uma consulta de pediatria. Para adultos, 2 meses.


Enquanto digeria a informação, o senhor da secretaria suspirou e lançou uma reflexão que me ficou a ecoar:


“Com tantos temas na saúde das crianças, que são o futuro do país, a prioridade é a imigração?”

A pergunta dele foi mais do que um desabafo – foi um espelho do país que temos.


Desde quando deixámos de pensar nos outros?


Desde quando a agenda política se tornou uma gestão de urgências mediáticas em vez de uma estratégia de bem-estar coletivo?


Desde quando começámos a normalizar que direitos básicos, como saúde, se transformem em bens de consumo, quase um luxo acessível apenas a quem pode pagar por seguros e consultas privadas?


Fico a pensar se não nos tornámos, como sociedade, uns “novos ricos” de mentalidade: queremos o último telemóvel, as férias no estrangeiro, a ideia de progresso. Mas esquecemo-nos do essencial — o estado social que garantiu que qualquer criança tivesse direito a ser cuidada, qualquer idoso tivesse direito a dignidade, qualquer pessoa tivesse direito à saúde sem pôr o cartão multibanco em cima da mesa.

E depois surge outra contradição: se os próximos médicos não pagam para se formarem, se usufruem de um modelo de educação gratuito e altamente subsidiado, porque não devolverem esse investimento ao país com um tempo mínimo de serviço nos hospitais públicos?

Não seria justo? Não seria lógico?


Porque é que até agora não temos resposta a esta situação? Porque se aceita, sem discussão séria, que muitos terminem a formação pagos pelos contribuintes e depois, legitimamente mas sem contrapartida, partam para o privado ou para o estrangeiro?


E quando o Governo critica que as urgências estão entupidas de casos não urgentes… será que sabem que não existem consultas para esses mesmos casos “não urgentes” nos centros de saúde? Ou será que falam com a tranquilidade de quem tem o privilégio de ser atendido de imediato, apenas por ocupar cargos de topo no Estado?


E mais: no governo anterior, quando se abriu a porta a candidaturas de médicos estrangeiros para os hospitais públicos, choveram críticas. Mas na prática… não resolvia parte do problema? Não seria melhor do que este vazio em que vivemos?


A verdade é que quem tem seguro consegue ultrapassar este constrangimento.

E todos os outros que não têm seguro, mas que precisam tanto ou mais de estarem seguros? O que acontece a essas crianças, a esses idosos, a essas famílias que continuam a acreditar que a saúde é um direito e não uma mercadoria?


Não é uma questão de esquerda ou direita. É uma questão de memória coletiva. De onde viemos, o que conquistámos e o que estamos dispostos a perder.


Se a saúde pública se tornar apenas uma sombra do que já foi, quem vai sofrer primeiro? As crianças, os idosos, os mais frágeis.

E se não somos capazes de cuidar deles, de que vale o progresso que tanto apregoamos?


Talvez a verdadeira pergunta seja:

Quando deixámos de pensar nos outros… e o que estamos dispostos a fazer para mudar isso?


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